Obras unem saberes indígenas e técnicas modernas de construção, com impacto social, econômico e ambiental na Amazônia.
O projeto de construção na Aldeia Sagrada Yawanawá, na Terra Indígena do Alto Rio Gregório, no Acre, que acaba de ganhar espaço na 19ª Exposição Internacional de Arquitetura, a Biennale Architettura, em Veneza, não foi apenas um desafio arquitetônico e logístico. Para o engenheiro acreano Irlan Moura, que participou ativamente da execução da obra, a experiência foi também um processo intenso de aprendizado, adaptação e intercâmbio cultural.
As construções, que incluem a Universidade dos Saberes Ancestrais, o Centro Cerimonial (Shuhu) e a Casa Modelo, todas erguidas com o uso de madeira nativa e técnicas sustentáveis, foram selecionadas para a mostra, realizada entre 10 de maio e 23 de novembro. Com o tema Intelligens. Natural. Artificial. Collective., a Bienal de Veneza deste ano, conduzida por Carlo Ratti, destaca iniciativas que propõem soluções arquitetônicas para a crise climática, considerando múltiplas formas de inteligência, da tecnologia à sabedoria tradicional.

Dentro desse contexto, o projeto da Aldeia Sagrada, realizado em parceria entre o Cacique Biraci Brasil Yawanawa e o escritório Rosenbaum Arquitetura, chama atenção por integrar técnicas contemporâneas de engenharia à arquitetura vernacular amazônica. As edificações foram construídas por uma equipe multidisciplinar, com intensa participação da comunidade Yawanawa e de construtores ribeirinhos, superando desafios logísticos extremos.
“A opção pela madeira nativa da região foi estratégica. Além de valorizar os recursos locais e reduzir a emissão de carbono, a escolha se mostrou eficaz diante dos desafios logísticos da Amazônia, onde o transporte de materiais convencionais, como concreto e aço, é limitado pelas condições dos rios e estradas. O uso de técnicas modulares, com pré-fabricação de partes das estruturas, também reduziu o tempo de construção e o desperdício de materiais”, explica o engenheiro Irlan Moura.

O papel do engenheiro local
Segundo Irlan, sua principal função foi atuar como elo entre os diferentes agentes técnicos envolvidos. “Minha função principal era unir a questão da técnica. Fui uma espécie de meio de campo entre os arquitetos da equipe do Marcelo Rosenbaum, a equipe da Ita Construtora (especializada em estruturas de madeira de alta performance), e a realidade local da construção civil aqui na Amazônia”, explica.
Com formação em engenharia civil, especialização em engenharia ambiental e ampla experiência na região do Vale do Juruá, Irlan contou também com o suporte da equipe da Fibonacci Engenharia, empresa acreana que adaptou os projetos estruturais e arquitetônicos às condições locais da floresta.

A complexidade técnica foi apenas uma das camadas do desafio. “Trabalhamos com materiais que não são comuns aqui, como o próprio concreto armado e o aço, que eles não tinham costumes de trabalhar, por exemplo. Tudo isso exigiu muita adaptação”, destaca.
Irlan relata que a execução da obra foi diretamente impactada pelas mudanças climáticas. A seca histórica que atingiu o Acre em 2024 dificultou o transporte de materiais pelo Rio Gregório, principal via de acesso à aldeia. “O nível da água estava tão baixo que, em alguns pontos, chegava ao nosso joelho. Isso impactou fortemente os custos e a logística. Planejar tudo isso deu muita dor de cabeça. Foi um processo difícil, um desafio muito grande, mas também muito gratificante”, relembra.
Para chegar até o local, o trajeto entre Cruzeiro do Sul e a Aldeia Sagrada, segundo o engenheiro, envolvia longas horas de deslocamento. Cerca de 3 horas de estrada, seguidas de mais 6 a 8 horas de barco.

Impacto social e econômico
Além dos desafios técnicos e logísticos, o projeto gerou um impacto econômico significativo para a região. “Diretamente, envolvemos mais de 180 pessoas, entre trabalhadores, barqueiros, cozinheiras, serradores e descarregadores de madeira. Se considerar também quem forneceu materiais, combustível, alimentação e serviços de transporte, o número chega a 350 ou 400 pessoas”, calcula Irlan.
Outro legado importante foi a qualificação da mão de obra local e a participação ativa dos indígenas. “Os trabalhadores da aldeia e da região já tinham muito conhecimento sobre madeira, mas ao longo da obra também aprenderam sobre concreto armado e novas técnicas construtivas. Houve um ganho técnico que fica como um legado”, avalia.

A participação indígena foi um fator decisivo na criação arquitetônica, como destaca o Cacique Biraci: “Tudo que construímos vem da nossa ancestralidade. Somos um povo conectado às novas tecnologias, mas com as nossas raízes no chão. Cuidamos da natureza à nossa volta e não dá pra fazer isso sozinho, por isso precisamos de alianças e parcerias. Com novos instrumentos, podemos fortalecer ainda mais nosso trabalho de preservação da natureza.”
Um intercâmbio cultural
Irlan Moura passou mais de quatro meses morando na aldeia durante o período da construção. A convivência com o cotidiano indígena trouxe aprendizados que vão além da engenharia. “Vivemos o dia a dia da aldeia, seguimos os rituais, paramos a obra em datas festivas e durante as vivências espirituais. Foi uma experiência de imersão total. Aprendi muito com o Cacique Biraci, com o Michel Acal e com o Marcelo Rosenbaum. Foi um grande intercâmbio cultural e técnico para todos nós.”
Agora, com a visibilidade da Bienal de Veneza, o engenheiro acredita que o projeto pode inspirar outras iniciativas de construção sustentável em áreas remotas da Amazônia. “Essa obra mostra que é possível realizar empreendimentos de grande porte, de forma sustentável e respeitando a realidade local. Ela é uma prova de que o futuro da construção na Amazônia pode e deve passar pelo diálogo entre tradição e inovação”, conclui.

Arquitetura com raízes na ancestralidade
Com 1.265 metros quadrados, a Universidade dos Saberes Ancestrais é a maior das três edificações. Seu desenho em formato de “Y”, proposto pelo Cacique Biraci, simboliza a união entre diferentes caminhos do conhecimento. O espaço abriga 12 salas de aula, um refeitório para 250 pessoas, uma cozinha industrial e área para 150 redes.
A Casa Modelo foi pensada para oferecer conforto térmico e integração com o ambiente. Possui sala e cozinha integradas, quatro quartos, dois banheiros e um pátio central, favorecendo a ventilação cruzada.
Já o Shuhu, o Centro Cerimonial, é dedicado a rituais e práticas espirituais. Sua imponente cobertura circular tem 41 metros de diâmetro e 33 metros de vão livre, totalizando 1.150 metros quadrados.

Para Marcelo Rosenbaum, o projeto representa uma nova forma de pensar e fazer arquitetura. “A gente não chega com uma ideia pronta. Nossa função é reconhecer o conhecimento ancestral e integrar esses saberes em um espaço construído com respeito e sentido.”
“Esse projeto é um exemplo de como o encontro de conhecimentos pode responder a problemas globais. Ao lado do povo Yawanawa, aprendemos que a floresta não é um lugar a ser conquistado, mas um lugar com o qual devemos dialogar”, conclui o arquiteto.