Proposta segue para a Câmara em meio a tensão entre Congresso e STF e sob forte crítica do Ministério dos Povos Indígenas.
O Senado Federal aprovou nessa terça-feira (9), em dois turnos, a proposta de emenda constitucional (PEC) que fixa 5 de outubro de 1988 como marco temporal para demarcação de terras indígenas no Brasil. A medida reacende um dos debates mais sensíveis da política nacional, a disputa sobre o alcance dos direitos territoriais dos povos originários.
No 1º turno, o texto foi aprovado por 52 votos a favor e 14 contra, além de uma abstenção, do senador Renan Calheiros (MDB-AL). Já no 2º, por 52 votos a favor e 15 votos contra – com a mesma abstenção de Calheiros.
Os três senadores do Acre votaram a favor da proposta. Marcio Bittar (PL), Sergio Petecão (PSD), e Alan Rick (Republicanos), integraram a lista dos parlamentares que reforçaram o avanço da tese do marco temporal.
A autoria da matéria é do senador Dr. Hiran, do PP de Roraima, um dos estados mais afetados pela disputa territorial entre grandes produtores e povos originários. A justificativa central do grupo pró-PEC é que o marco temporal garantiria segurança jurídica.
No entanto, críticos argumentam que o efeito é exatamente o oposto, ao institucionalizar conflitos fundiários já intensos e fragilizar direitos que a própria Constituição reconhece como originários.
A votação foi realizada às vésperas do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF), que volta a analisar nesta quarta-feira (10) ações envolvendo o tema.
A decisão do ministro Gilmar Mendes que restringiu quem pode solicitar impeachment contra ministros do STF acirrou o clima político e acelerou a movimentação no Senado.
Após acordo entre líderes, os senadores aprovaram um calendário especial, levando a PEC diretamente ao plenário, contornando o bloqueio que mantinha a proposta parada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
MIP condena aprovação e fala em violação constitucional
Logo após a votação, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) manifestou repúdio à aprovação da PEC. A pasta, dirigida por Sonia Guajajara, classificou o movimento como “uma violação dos direitos constitucionais dos povos indígenas”.
Em nota, o ministério afirmou que o marco temporal intensifica disputas fundiárias, amplia a insegurança jurídica e ameaça a preservação ambiental. O comunicado destacou que as Terras Indígenas estão entre as áreas mais conservadas do planeta e criticou a contradição entre a recente valorização dos povos originários na COOP30 e o recuo representado pela decisão do Senado.
“O marco temporal intensifica conflitos fundiários e gera insegurança jurídica, além de prejudicar a preservação ambiental já que as Terras Indígenas são as mais preservadas do planeta. O Brasil que comemorou a valorização dos povos indígenas na COOP30 vê hoje o Senado Federal indo contra os direitos dos nossos povos”, disse a pasta.
Segundo o MPI, a tese desconsidera a realidade de povos nômades e de comunidades expulsas de seus territórios antes de 1988, impondo um critério que não reflete as violências históricas sofridas por essas populações.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) também reforçou que o marco temporal desconsidera expulsões históricas, remoções forçadas, deslocamentos violentos e o modo de vida de povos nômades, para quem a fixação de uma data exata jamais refletiu a realidade vivida.
Dinamam Tuxá, coordenador executivo da APIB, alertou que a PEC e a Lei 14.701/2023, que também tenta instituir o marco temporal, são tentativas de “ressuscitar pontos já declarados inconstitucionais”. Ele espera que o STF reafirme a jurisprudência construída e “proteja as Terras Indígenas como proteção à democracia, ao clima e ao futuro do país”.
A proposta aprovada no Senado estabelece que os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que ocupavam na data da promulgação da Constituição de 1988 ou que estivessem em disputa judicial naquele momento.
O texto ancora-se na definição de terras tradicionalmente ocupadas como áreas habitadas permanentemente, utilizadas para atividades produtivas e imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais e da reprodução física e cultural dos povos, conforme usos, costumes e tradições.
A PEC tenta reverter o entendimento firmado pelo STF em 2023, quando a Corte declarou a tese inconstitucional. O Congresso, porém, aprovou uma lei instituindo o marco temporal. O governo vetou trechos, e a bancada do agronegócio articulou a derrubada dos vetos no mesmo ano.
Em abril do ano passado, Gilmar Mendes suspendeu todos os processos sobre a constitucionalidade da lei e coordenou com o Senado a criação de uma comissão de conciliação, o que havia freado o andamento da PEC. A pressão recente do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, recolocou o tema na pauta prioritária.
A pressa para votar a proposta de emenda gerou questionamentos sobre a qualidade do processo legislativo. Em poucas horas, o plenário assistiu a discursos que celebravam a medida como um acerto de contas com o país. O senador Luis Carlos Heinze afirmou que o Senado estaria “dando uma lição ao Brasil”. Jorge Seif questionou o que os povos indígenas “querem mais”, ignorando o histórico de violações territoriais.
O próprio Dr. Hiran defendeu que a aprovação abriria caminho para a exploração econômica das terras com “devida aquiescência” das comunidades, retórica que especialistas e organizações indígenas traduzem como pressão por mineração e agronegócio em áreas protegidas.
A narrativa do “desenvolvimento” aparece como justificativa para flexibilizar a proteção de territórios que, segundo estudos reconhecidos nacional e internacionalmente, concentram os maiores índices de conservação ambiental do país.


