Por Juan Vicent Diaz
As mudanças climáticas não são mais um assunto distante ou restrito aos especialistas. Elas já se materializam no cotidiano das cidades, das comunidades e das populações que vivem às margens dos rios e nas bordas das periferias urbanas, em todo o planeta. Seus efeitos atingem com mais força e afetam profundamente os mais vulneráveis.
Segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, o aumento da temperatura global está mudando os padrões climáticos, intensificando o ciclo hidrológico e contribuindo para precipitações mais intensas e prolongadas, que impactam diretamente as áreas urbanas densamente povoadas. E, quando o clima muda, é a vida de quem vive em moradias precárias — na maioria das vezes, sem estrutura adequada — que mais sente o impacto.

O aumento dos desastres climáticos, com fortes impactos sociais e ambientais, tem se tornado uma realidade cada vez mais preocupante. Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), vivemos um período em que os riscos se ampliam e se tornam mais complexos.
Populações que habitam moradias precárias ou assentamentos informais, como morros, margens de rios e áreas sem infraestrutura, estão entre as mais expostas a enchentes, secas, ondas de calor e outros eventos que se mostram cada vez mais intensos e duradouros. Uma revisão publicada na revista RSIS International confirma que a falta de infraestrutura, o planejamento urbano deficiente e as condições habitacionais inadequadas potencializam os impactos da mudança climática sobre essas comunidades.

Com isso, o que deveria ser abrigo acaba se transformando em incerteza e passa a compor o quadro de vulnerabilidade. A moradia adequada é um direito essencial, reconhecido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948 e reafirmado pela Constituição Federal de 1988, que diante dos desastres socioambientais tem sido constantemente violado.
A realidade amazônica
Quando se considera as realidades amazônicas, o problema é ainda mais grave. A falta de saneamento, drenagem e acesso a serviços básicos nas periferias urbanas e nas comunidades ribeirinhas multiplica os efeitos das enchentes e das secas. E, quando a água chega ou falta, é nos olhos dos moradores que se vê a materialização dos danos causados por esses desastres. O deslocamento forçado, a perda de bens, a interrupção da vida escolar ou do trabalho, tudo isso coloca em risco a dignidade humana que a moradia deveria garantir.

No Estado do Acre, no sudoeste da Amazônia brasileira, a conjunção de clima extremo e moradia vulnerável ganha contornos muito concretos. Um estudo recente de pesquisadores do Mestrado em Ciências Ambientais da Universidade Federal do Acre (Ufac) registrou que, entre 1987 e 2023, o estado contabilizou 202 eventos extremos, sendo 33% enchentes e 6% crises hídricas.
Ainda de acordo com a pesquisa, até 2004 a média era de aproximadamente um evento extremo por ano em cada município. Após 2010, essa frequência mais que dobrou, com “dois ou mais eventos registrados no mesmo ano, no mesmo município”.
Nas cidades de Rio Branco, capital, e Cruzeiro do Sul, no interior do estado, foram registrados 14 e 21 eventos extremos, respectivamente, ou aproximadamente um evento a cada dois anos.

Por trás dos números
Em 2024, Rio Branco viveu uma das maiores enchentes da história recente. O rio passou dos 17 metros, desabrigando centenas de famílias. Poucos meses depois, enfrentou uma seca severa, com rios em níveis recordes de baixa e comunidades inteiras isoladas por falta de navegação. Essa alternância entre excesso e escassez mostra como o clima já não respeita as antigas estações.
Quando a água invade as casas, o prejuízo é imediato. Quando falta, o sofrimento é silencioso. Nas duas situações, o direito à moradia digna é ferido. Casas que deveriam proteger acabam se tornando o primeiro ponto de vulnerabilidade. Uma família que vive em área de risco, sem escoamento de água e sem fundação adequada, ao enfrentar esses desastres, vê sua dignidade abalada.

Os números científicos ganham rostos quando as águas sobem ou quando os rios secam. São histórias como a de Janaira da Silva, diarista e mãe de três filhos, que viu a casa que construiu com esforço ser levada pela enxurrada. Em abril de 2023, Janaira passou por um momento que mudou sua vida. A casa onde morava, no bairro Conquista, em Rio Branco, foi levada pela força da água que transbordou do Igarapé São Francisco.
“Saí arrastando meus filhos, um pela mão, o outro amarrei num cinto e o menor, que tinha um ano, levei no braço. Quando consegui voltar, já não tinha mais nada. Minha casa estava toda encoberta”, contou em entrevista na época.

Quando a água baixou, o que restou foram pedaços de madeira e um terreno difícil de reconhecer. “Achei um garfo com minhas iniciais. Foi assim que soube que era ali”, lembrou. Por dias, ela dormiu em abrigos e viveu de doações. O medo de recomeçar com três filhos e sem casa a fez desacreditar do futuro.
A história de Janaira não é exceção. É o retrato de centenas de famílias acreanas que, nos últimos anos, têm vivenciado o aumento da frequência e da intensidade desses eventos extremos.
Programas habitacionais reduzem vulnerabilidade
As discussões internacionais sobre o clima, como as que serão retomadas na COP 30, que pela primeira vez acontece dentro do território amazônico, em Belém (PA), tratam da chamada adaptação climática. No fundo, isso significa encontrar formas de viver com os efeitos do clima que já mudaram.
Na Amazônia, essa adaptação passa por garantir moradias seguras, com acesso à água, energia e saneamento, em locais que não ofereçam risco. Não é um “extra” para poucos, mas um requisito para que as pessoas vivam com dignidade diante de um clima em mutação. Segundo um estudo da Habitat for Humanity International, apenas 21% dos países incluíam em seus planos nacionais de adaptação (NDCs) temas de habitação e assentamentos informais.
Adaptar-se virou uma questão de sobrevivência. E, quando o assunto é moradia, essa adaptação passa pelo investimento público e por políticas habitacionais que levem em conta o clima, o território e as pessoas.

Nos últimos anos, o governo do Acre tem tentado reduzir o déficit habitacional e melhorar as condições de moradia, principalmente para as famílias de baixa renda. O estado tem um déficit estimado em quase 24 mil moradias, um desafio que vem sendo enfrentado em parceria do governo federal.
Em 2024, foram assinados contratos para a construção de mais de mil e seiscentas unidades habitacionais em cidades como Rio Branco, Xapuri e Cruzeiro do Sul. O investimento, de mais de duzentos milhões de reais.
Além dessas construções, há a previsão de mais de duas mil moradias até 2026, dentro de programas que buscam realocar famílias que vivem em áreas de risco e ampliar o acesso à casa própria. Municípios do interior, como Tarauacá e Sena Madureira, também foram incluídos no programa Minha Casa, Minha Vida, com recursos do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social.
Essas iniciativas ajudam a transformar o cenário, mas ainda são pequenas diante da necessidade. Boa parte dessas famílias vive em condições precárias, expostas ao risco de enchentes e à falta de infraestrutura básica.

Janaira, que havia perdido a casa em 2023, foi beneficiada com uma dessas moradias, no Conjunto Habitacional Jequitibá, entregue no ano seguinte. A entrega da chave da nova casa para Janaira da Silva é exemplo de que, quando uma moradia segura é entregue em local estruturado, com água, energia e ruas planejadas, ela devolve mais que um teto. Devolve também a dignidade, estabilidade e a chance de sonhar de novo.
Por isso, os programas habitacionais são mais do que política pública. São uma forma de adaptação às mudanças do clima e um passo para reduzir as desigualdades que se agravam a cada enchente e a cada estiagem. Garantir moradia segura e adequada é, ao mesmo tempo, enfrentar a crise climática e proteger a vida. No Acre e em toda a Amazônia, onde a natureza dita o ritmo da existência, esse é um compromisso que precisa sair do papel e chegar às portas das casas que mais precisam resistir.


