Em entrevista à Agência Brasil, Ângela fez um balanço crítico da conferência, cobrou o fortalecimento de políticas públicas para povos da floresta e disse que o pai veria uma COP na Amazônia como “uma grande oportunidade de melhorar a vida de seus companheiros”.
Trinta e sete anos após o assassinato de Chico Mendes, sua filha, Ângela Maria Feitosa Mendes, carrega adiante o legado que transformou o seringueiro acreano em símbolo global da luta socioambiental.
Em entrevista concedida à Agência Brasil no espaço Chico Mendes, instalado no Museu Paraense Emílio Goeldi durante a COP30, em Belém, ela fez um balanço crítico da conferência, cobrou o fortalecimento de políticas públicas para povos da floresta e disse que o pai veria uma COP na Amazônia como “uma grande oportunidade de melhorar a vida de seus companheiros”.
O Comitê Chico Mendes, que Ângela dirige, nasceu na noite do crime que interrompeu a vida do líder extrativista em 1988, em Xapuri, no interior. Criado por aliados políticos e defensores de direitos humanos, o comitê articulou a mobilização nacional e internacional que resultou, dois anos depois, na condenação de Darly Alves da Silva e de seu filho, Darcy Alves Ferreira, mandantes do assassinato.
Desde então, tornou-se guardião da memória do Mártir da Floresta que, se estivesse vivo, completaria 81 anos em dezembro, e das causas que ele defendeu.
“Era necessário criar uma forma de mobilizar a sociedade nacional e internacional”, relembra Ângela ao explicar a origem do comitê. “Meus pais e seus companheiros estavam sob muita dor. Havia um sentimento claro de impunidade. Era preciso exigir justiça e, ao mesmo tempo, garantir que essa memória de luta não fosse apagada.”
Hoje o comitê atua principalmente na formação de jovens e mulheres da Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes. A inspiração vem de uma carta deixada pelo líder pouco antes de morrer, dirigida aos jovens do futuro. Nela, ele vislumbra um mundo que teria superado a exploração e onde restaria “somente a lembrança de um triste passado de dor, sofrimento e morte”.
“Desculpem. Eu estava sonhando quando escrevi estes acontecimentos que eu mesmo não verei. Mas tenho o prazer de ter sonhado”, finaliza a carta.
A carta tornou-se eixo de programas de mobilização, como o núcleo jovem, o Festival Jovens do Futuro e ações educativas em escolas e territórios extrativistas.
“A carta foi um chamamento”, afirma. “Jovens do mundo inteiro, mesmo sem conhecê-la, se sentiram tocados por aquilo que meu pai previu lá atrás. A gente entendeu que ele tinha sido visionário.”
COP30 e os limites das negociações
Sobre a COP30, Ângela reconhece a força da mobilização popular, mas avalia que as negociações oficiais ainda seguem distantes das populações que vivem na linha de frente da crise climática. Para ela, movimentos indígenas, extrativistas e quilombolas “avançaram muito pouco” na conquista de espaços reais de decisão.
“Eu não acredito que essas populações estejam sendo ouvidas. Elas têm todo direito de reivindicar, mas as COPs ainda não dão as respostas que elas precisam. Ainda é cedo para dizer o que esta vai entregar, mas até agora não vejo grandes definições”, avalia.
Ela destaca que a primeira semana foi marcada por mobilizações expressivas, como o Porongaço, a Marcha Mundial pelo Clima e a marcha dos povos indígenas. Movimentos que, segundo ela, lembram ao mundo que a Amazônia produz soluções e resistência.
Mas há limites. “Há uma disputa ali dentro. A gente viu indígenas sendo tratados como invasores por tentar ocupar a Blue Zone, enquanto lobistas dos combustíveis fósseis circulam livremente, em grande número, hospedados nos melhores hotéis”, aponta.
Segundo Ângela, apesar de o governo brasileiro ter criado canais de diálogo considerados positivos, como o balanço ético global e a figura dos enviados da sociedade civil, o peso do lobby dos combustíveis fósseis continua a ditar rumos.
Ela cita como exemplo o avanço do licenciamento para exploração de petróleo na Foz do Amazonas, posição que considera incompatível com o discurso de transição justa. “A gente fala em transição justa, em crise climática causada pelos combustíveis fósseis, e a solução apresentada é expandir exploração de petróleo? Isso não faz sentido. É um contrassenso completo.”
“Os movimentos se organizaram, formaram lideranças, produziram documentos. Se alguém vai ouvir, não sei”, afirmou. Ainda assim, acredita que o resultado final da conferência pode trazer avanços em financiamento climático, tema crucial para os povos da floresta.
Alianças e retrocessos no Brasil
Relembrando a formação da Aliança dos Povos da Floresta, idealizada por Chico nos anos 1980, Ângela defende a necessidade de ampliar coalizões entre comunidades tradicionais, academia, setor produtivo e instituições financeiras. Ela critica modelos que exploram recursos da floresta sem retorno digno às populações locais e cobra uma sociobioeconomia que fortaleça cadeias sustentáveis.
“Cada segmento da sociedade pode contribuir. A academia traz pesquisa, conhecimento. As indústrias farmacêutica e cosmética poderiam incluir essas comunidades nas cadeias produtivas, em vez de só retirar matéria-prima pagando quase nada. Se a floresta acabar, de onde vão tirar muru-muru, ipê branco, pau-rosa?”, questiona.
A ativista também faz um diagnóstico duro da conjuntura brasileira. Para ela, persistem resquícios do período de retrocessos ambientais e violências no campo, agravados por um Congresso conservador e pelo avanço de economias predatórias sobre territórios extrativistas e indígenas.
Apesar de reconhecer avanços após o período de negacionismo climático, ela diz que a sensação de impunidade segue forte. “O bolsonarismo deixou essa sensação de que tudo era permitido”, afirma. “Os assassinatos continuam acontecendo. Há duas semanas mataram duas quebradeiras de coco no Pará. O sistema que financia expulsões, grilagem e violência está entranhado no poder.”
“O capitalismo é violento, cruel, ganancioso. Quer tomar posse dos territórios”, afirmou. Ainda assim, reforça que a organização coletiva mantém viva a resistência.
Resex e legado
As reservas extrativistas são definidas por Ângela como “territórios estratégicos” na contenção do desmatamento e na manutenção dos modos de vida tradicionais. Criadas a partir de 1990.
“São territórios estratégicos. A Resex garante modos de vida, cultura, floresta em pé. Quando meu pai morreu, nenhuma reserva existia ainda. Hoje são quase 100, somando mais de 60 milhões de hectares protegidos. Isso mostra que a luta dele não foi em vão.”
Para ela, esses números mostram que a luta de Chico não foi em vão, embora sua presença em vida pudesse ter acelerado conquistas.
Questionada sobre como o pai avaliaria uma COP realizada na Amazônia, Ângela responde que ele enxergaria na conferência “uma grande oportunidade”, desde que compromissos globais se traduzam em melhorias concretas para os povos da floresta.
Apesar do ceticismo sobre a escuta dos territórios dentro das negociações oficiais, ela mantém otimismo moderado. “Se fosse para ser pessimista, não teríamos feito todo o esforço para trazer esse espaço”, afirmou, referindo-se às iniciativas paralelas organizadas pelo Comitê e parceiros, como a Feira de Sociobiodiversidade.
Com informações da Agência Brasil.


