“Olhe para cima”: o espetáculo como política pública em Rio Branco

O céu da Gameleira, no Centro de Rio Branco, foi tomado pelas coreografias do show de drones na noite deste sábado (20). Anjos, árvores de Natal, o trenó do Papai Noel e, ao fim, a bandeira do Acre se desenharam no ar. Por alguns minutos, a cidade olhou para cima. Mas, enquanto o céu se iluminava, o chão contava outra história. Uma história capturada pelo olhar atento do fotojornalista do Proa, Juan Vicent Diaz.

No registro, centenas de famílias assistem ao espetáculo de Natal promovido pela Prefeitura de Rio Branco. Foram 600 drones, 15 minutos de luz e tecnologia, ao custo de R$ 747.666,67 em dinheiro público. Fazendo uma conta simples, quase R$ 50 mil por minuto.

Os olhares estavam voltados para cima, os celulares erguidos, aplausos surgiam ao fim de cada imagem gerada pelos equipamentos. Ao lado, ou melhor, abaixo de todo esse espetáculo, uma pessoa em situação de rua dorme na calçada, invisível em meio ao brilho e à euforia.

O show de drones da Prefeitura de Rio Branco não é só um evento natalino comum. Ele é uma ação política mediada por imagens, pensada para ser visto, fotografado, compartilhado e consumido. O espetáculo não termina na Gameleira, ele continua nas redes sociais, nos discursos oficiais e alimenta a narrativa da gestão municipal de uma cidade “moderna”, “tecnológica” e “merecedora”.

A fotografia de Juan Vicent Diaz rompe essa mediação confortável. Ao incluir no mesmo enquadramento o brilho do céu e o homem no chão, a imagem desmonta o espetáculo. Ela revela aquilo que o espetáculo precisa esconder. A realidade concreta da vida material. Quando os drones pousam e o público se dispersa, a vulnerabilidade permanece. O homem continua ali. A cidade, também.

Não deixa de ser irônico que o secretário municipal de Comunicação, Ailton Oliveira, tenha sugerido o uso da imagem de pessoas em situação de rua na apresentação de drones para concorrer em um concurso fotográfico da própria prefeitura. Não com o olhar crítico e humano impresso por Diaz, mas como um elemento simbólico, quase decorativo, para enaltecer a iluminação natalina.

“Claro, se a pessoa conseguir fazer uma foto com a apresentação dos drones. Eu até estava conversando com um colega e dei a ideia: pegar um morador de rua ali, sorrindo, para uma foto, como se fosse um presente. Porque é uma tristeza agora, o cara sonhando com um Natal feliz, é uma foto, né”, disse o secretário.

A pobreza, aqui, deixa de ser um problema político e passa a ser um elemento estético, quase um acessório simbólico do evento. A dignidade humana é convertida em imagem consumível, em narrativa emocional, em peça de marketing institucional.

Mas o homem não sorria. Dormia no meio da multidão, aparentemente indiferente ao barulho da festa. Não há como saber se ele viu ali algum presente, nem se sua tristeza se dissolve em sonhos de Natal.

A fotografia do Proa faz o oposto do sugerido pelo secretário. Ela recusa a estetização da pobreza, não transforma o homem em símbolo feliz, nem em alegoria natalina. Ele dorme. E isso é o que mais incomoda.

Show de drones com 600 equipamentos iluminou o céu da Gameleira na noite de sábado (20), em Rio Branco. Foto: Juan Vicent/Proa

Porque “quanto mais o espectador contempla, menos ele vive.” Enquanto a multidão olha para cima, para as imagens coreografadas no céu, a realidade ao redor é suspensa. O homem dormindo na calçada não é só invisibilizado, ele se torna parte do cenário ignorado, um ruído que o espetáculo precisa silenciar.

O gasto não se justifica apenas como lazer, mas como produção de consenso. O espetáculo cumpre a função de ocupar o olhar, anestesiar o incômodo e transformar a desigualdade em pano de fundo.

Não se trata de uma distração inocente. O show funciona como cortina de fumaça. Cria a sensação de movimento, inovação e cuidado, enquanto as estruturas permanecem intocadas.

Se mais de R$ 700 mil foram destinados a 15 minutos de luz no céu, o orçamento municipal reservou apenas R$ 3 para políticas voltadas às mulheres.

Vou escrever novamente, mas por extenso, para que olhos apressados não entendam de forma equivocada.

Três reais.

Show de drones na Gameleira custou R$ 747.666,67 aos cofres públicos e teve duração de 15 minutos. Foto: Juan Vicent/Proa

A cultura segue sem recursos consistentes. Mercados públicos são privatizados. A infância continua desassistida. Falta água nas torneiras. Faltam remédios nos postos de saúde. O transporte público não atende. O espetáculo não resolve essas ausências, apenas as silencia temporariamente.

O debate aqui não é sobre o show em si, tampouco sobre as pessoas que estiveram na Gameleira para assisti-lo. O lazer, a cultura e os momentos de encantamento também têm lugar na vida urbana e não devem ser tratados como excessos por princípio. O questionamento que se impõe é outro, o das prioridades.

Em uma cidade que convive com pessoas dormindo nas ruas, com dificuldades no acesso à saúde, à moradia e à assistência social, o valor destinado ao show deixa uma interrogação incômoda:

Para quem, afinal, essa cidade está sendo pensada?

O espetáculo foi bonito, sem dúvida. Mas beleza não aquece quem dorme ao relento. “Luz” não substitui dignidade. E nenhum drone, por mais tecnológico que seja, consegue esconder o fato de que, em Rio Branco, o brilho do gasto público dura pouco, enquanto a falta de compromisso social segue, noite após noite, ocupando o mesmo lugar.

O prefeito Tião Bocalom (PL) não poupou animação ao destacar o caráter inédito de um show que já foi visto em Londres e em outras “cidades grandes”, frequentemente citadas como exemplo de suas “grandes obras”. “Vocês merecem. O povo de Rio Branco e do Acre merece. Isso é tecnologia, e a cidade merece”, afirmou.

Espetáculo de drones promovido pela Prefeitura de Rio Branco marcou a programação de Natal na capital acreana. Foto: Juan Vicent/Proa

Sim, o povo merece. Merece cultura, lazer, beleza. Mas merece, sobretudo, prioridade no que é básico. E as prioridades da Prefeitura de Rio Branco são, no mínimo, questionáveis.

O show terminou com os drones formando a logomarca da gestão, enquanto a calçada continuou ocupada. E, ao que tudo indica, o “Natal de Vida, Esperança e Dignidade” não é para todos.

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