Todos os dias, os irmãos Antônio Barbosa, de 67 anos, e as gêmeas Maria do Socorro e Maria de Fátima Barbosa, de 68 anos, aguardam na mesma estrada de terra pelo ônibus que os leva à Escola Estadual Ruy Azevedo, localizada no Ramal do Gurgel, na região do Amapá, zona rural de Rio Branco, capital do Acre. Unidos pelo mesmo caminho e pela mesma sala de aula, eles redescobrem, na Educação de Jovens e Adultos (EJA), que nunca é tarde para transformar realidades.
É por essa trilha de recomeços da EJA que passam os sonhos de muitos acreanos que não desistiram da educação, e que carregam, nos cadernos, não somente letras e números, mas histórias inteiras de vida, tempo e coragem. Trajetórias, como a dos irmãos Barbosa, que refletem o impacto transformador da modalidade que atende mais de 15 mil alunos em todo o estado.

Como a maioria dos estudantes que buscam uma segunda chance de aprender, todas as noites, antes mesmo do ônibus escolar chegar, os irmãos esperam no ponto, enfrentando a poeira ou a lama que marcam o caminho até a escola. Entre risos, conversas e a expectativa de mais aprendizado, eles seguem juntos, passo a passo, mostrando que a rotina da EJA é também uma rotina de disciplina e sonhos compartilhados.
“A gente vem todo dia junto. Brincamos que somos os velhinhos da sombrinha. Todo dia estamos aqui no ponto, os três velhinhos esperando o ônibus pra ir pra escola”, repetem os irmãos.
Antônio é artesão, profissão que exerce há mais de 20 anos. Como muitos jovens do interior, por diversas razões, ele não conseguiu concluir os estudos na idade regular e agora busca uma segunda chance na EJA. Suas mãos, acostumadas a esculpir madeira e sementes da floresta, aprendem na escola a desenhar números e fórmulas no papel. Ele gosta de contar histórias e diz que o que o motivou a voltar a estudar foi o desejo de aprender.

“Quando nós viemos do seringal, de uma vez, que o papai veio aqui pra cidade, éramos muitos meninos, quinze ao todo. Na época, parece que vieram treze do seringal. E, como eram muitos, eu voltei para o seringal e não estudei. Eu praticamente não sabia nada mesmo. Mas, quando voltaram com a matrícula aqui, eu resolvi tentar. Eu sempre gostei de matemática, tinha facilidade em fazer contas de cabeça. É o que mais gosto de estudar”, conta sorrindo.
A irmã, dona Maria do Socorro, vive sozinha e divide a rotina da sala de aula com os cuidados com as plantações do quintal e a criação de galinhas. “Aqui em casa, eu… eu gosto de plantar. Planto macaxeira, banana, abacaxi, tenho umas criaçãozinhas, tenho muitas coisinhas pra fazer”. Animada, ela corre entre uma tarefa e outra para não se atrasar para a aula.

“Nós já estamos velhinhas, mas a cabeça quer aprender. Eu já sei escrever umas coisas, ler um pouco. Dá uma alegria que não dá pra explicar”, revela, orgulhosa, ao ler uma frase bíblica no calendário da parede: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, se não por mim”.
Já dona Maria de Fátima é mais tímida, fala pouco, mas compartilha das mesmas memórias e alegrias dos irmãos. Ela confessa que antes de iniciar na EJA tinha pensamentos desanimadores por ficar sozinha em casa.

“Eu gosto da escola. A gente fica em casa sozinho, fica pensando muitas coisas, e na aula a gente está aprendendo. Assim, quando a gente morre, fica tudo triste, né? E assim a gente vai distraindo. A gente vai distraindo na escola”, relata como quem encontrou na escola um lugar de conforto.
A cumplicidade entre os três é evidente. Quando o dia termina, eles trocam a rotina doméstica pelos livros e cadernos. São alunos muito dedicados e não costumam faltar às aulas. Apoiando-se uns nos outros encontraram, nas pequenas conquistas, uma forma de continuar se movimentando.

“Um incentiva o outro. Quando um falta, o outro já vem chamar. Agora até que eu estou faltando, mas não faltava, não. Não faltava na aula. Agora elas duas não faltam, não”, conta Antônio.
Tarefas que para alguns são simples como assinar o próprio nome ou ler uma placa na rua, para eles são motivo de orgulho. “Antes eu só olhava os papéis, as placas, e não sabia o que estava escrito. Agora, quando eu pego um papel, eu leio. Isso não tem preço”, afirma Socorro. “Quando eu voltei a estudar aqui, a gente não sabia nem assinar o nome. A gente já melhorou um pouco, né? Então, já tá bom. Hoje já assino direitinho”, completa Antônio.

“A gente quer ir mais longe”
Também foi na sala de aula que as gêmeas reacenderam sonhos antes adormecidos e que, através da EJA, surgem como novas possibilidades de futuro. Elas encontraram os caminhos da escola, como costumam dizer, e não pensam em parar. Além de compartilhar a mesma data de aniversário, agora, dividem também o mesmo desejo, o de chegar à faculdade.
“A gente quer ir mais longe. O professor conhece gente da nossa idade que já fez faculdade. Se eles chegaram, a gente também chega”, diz Socorro.
Fátima ainda não sabe que curso deseja fazer, mas sabe bem onde quer chegar. “Eu também tenho vontade de fazer faculdade. Alguma coisa… não sei ainda. Eu só quero chegar lá”, confessa.

O exemplo que vem dos filhos, volta para eles
São essas mesmas conquistas e sonhos dos irmãos Barbosa que movem Andressa, de 27 anos. Mãe de dois filhos, a jovem abandonou a escola aos 15 anos, quando engravidou pela primeira vez. Hoje, ela representa uma geração que tenta romper um ciclo de interrupções e viu na Educação de Jovens e Adultos a oportunidade de voltar para sala de aula.
“Eu sempre tive o sonho de terminar o ensino médio e fazer faculdade. Eu parei de estudar quando engravidei do meu primeiro filho. Depois veio o segundo, e eu pensei que não ia mais voltar. Mas sempre tive vontade”, lembra.

Dois anos após decidir retomar os estudos, Andressa contabiliza diversas vitórias. Saiu do status de desempregada para auxiliar de serviços gerais na própria escola onde estuda. Segundo ela, a educação abriu caminhos e trouxe novas oportunidades. “Desde que voltei a estudar a vida mudou. Conheci mais pessoas, consegui mais diárias, consegui esse trabalho aqui na escola, e agora posso comprar as coisas pros meus meninos”.
São justamente os filhos que a impulsionam a seguir aprendendo, movida pela vontade de construir um futuro diferente para eles.
“Eu sempre tive o sonho de concluir os estudos para oferecer o melhor pros meus filhos. São eles que mais me incentivam. Pra mim, se eu quero que eles estudem, eu também tenho que estudar. A escola muda a cabeça da gente. Quero dar um futuro melhor pros meus filhos e ser exemplo pra eles”.

O papel social da EJA rural
O coordenador pedagógico da EJA na escola Ruy Azevedo, professor Celso Lopes de Santana, acompanha essas histórias de perto. Ele atua na escola há cinco anos e coordena a Educação de Jovens e Adultos desde 2023.
“Tem aluno que chegou sem saber segurar no lápis. Hoje escreve o nome e lê bilhetes, consegue sentar com o filho, com o neto, pra ensinar alguma coisa que antes não sabia. Isso é mais do que aprender letras, é recuperar autoestima. Esse é outro ganho, outra garantia que vem com o ensino da EJA”, destaca.
A unidade rural atende cerca de 30 alunos, distribuídos em cinco turmas — a maioria acima dos 40 anos e alguns já idosos, com mais de 60 anos. Celso vê na modalidade uma das políticas públicas mais transformadoras do país.

“A EJA tem um papel transformador muito grande. Aqui, a maioria dos nossos alunos são pessoas humildes, da zona rural, que trabalham o dia todo e ainda vêm estudar à noite. São pessoas que não tiveram oportunidade antes e agora estão buscando o que foi negado lá atrás. Tem gente que voltou a estudar pra não ser enganado, pra entender o valor do dinheiro, pra ler uma receita médica. A EJA devolve autonomia, faz as pessoas se sentirem parte da sociedade”, explica.
Ainda segundo Celso, a oferta da EJA na escola Ruy Azevedo é primordial para os alunos da região. “Se não existisse a Escola Ruy Azevedo, há 99% de certeza de que eles deixariam de estudar. Assim como já aconteceu com outros, não por falta de portas abertas, mas por causa do trabalho e da distância. A escola acaba assumindo, além da função da educação, uma função social também, de trazer pra sociedade desse entorno a possibilidade da continuidade dos estudos, de recomeçar ou mesmo de começar.”
Educar é resistir
O coordenador também fala sobre os desafios diários para manter os alunos na sala de aula. “A maior dificuldade é manter o aluno assíduo. O aluno da EJA não falta porque quer. Ele chega tarde do trabalho, às vezes a aula já começou e ele ainda está vindo. Se o transporte quebra em um ramal, deixa de atender outro. Tudo isso dificulta a execução dessa política pública. Mas, quanto ao empenho, não temos dificuldade: são muito dedicados, são os alunos mais comprometidos que eu já vi”, conta.
Para garantir a presença dos alunos nas aulas da EJA, o professor explica que a escola trabalha com foco no acolhimento e mobilizando uma grande rede de profissionais na Busca Ativa.
“Sabemos que o turno noturno da EJA tem uma característica muito diferenciada. São alunos que saem do trabalho cansados, às vezes o dia inteiro no sol, no pesado. Então, precisamos sempre estar motivando, mostrando que eles são capazes e que vão alcançar bons resultados. E não só motivando: a gente também faz busca ativa. Quando o aluno falta, a gente liga, pergunta o que aconteceu. Vamos até a casa do aluno, reunimos a equipe da escola, professores, às vezes outros alunos, e saímos de porta em porta pra conversar. Isso ajuda tanto a aumentar as matrículas quanto a reforçar o engajamento.”

Celso reforça que o papel da EJA vai além da alfabetização. “Não é só aprender a ler e escrever. É dar oportunidade pra pessoa se ver de outra forma, se sentir parte. Por isso, dentro da escola, o acolhimento dos professores e de toda a equipe é fundamental. Todos são orientados a tratar bem, desde a alimentação — se a comida está quente, se está de qualidade —, porque tudo isso também tem a ver com o acolhimento, com o sentimento de pertencimento àquela escola. Temos muito o que melhorar, claro, mas temos uma comunidade escolar muito respeitosa”, conclui.
Mais de 15 mil alunos atendidos
A Educação de Jovens e Adultos (EJA) desempenha um papel fundamental na ampliação do acesso à educação básica no Acre. De acordo com dados da Secretaria de Estado de Educação (SEE), extraídos do Sistema Integrado de Monitoramento e Avaliação da Educação (SIMAED), mais de 15 mil alunos estão matriculados pela modalidade na rede estadual de ensino, no exercício de 2025.
Ao todo, a oferta da EJA alcançou 124 escolas distribuídas pelos 22 municípios acreanos, sendo 66 localizadas em áreas rurais e 58 em áreas urbanas, o que evidencia o esforço da rede em garantir o atendimento educacional também em regiões mais afastadas.
Ainda segundo o levantamento, as mulheres representam maioria do total de alunos (7.916), enquanto os homens somam 7.492 matrículas. A maior concentração está na faixa etária de 15 a 20 anos, com 7.077 estudantes, seguida pelo grupo de 21 a 30 anos (4.708). As demais faixas apresentam o seguinte perfil: 31 a 40 anos (1.529 alunos), 41 a 50 anos (1.155) e 51 anos ou mais (939).

A EJA é destinada a pessoas com 15 anos ou mais para o Ensino Fundamental e 18 anos ou mais para o Ensino Médio, oferecendo a possibilidade de retomada dos estudos a quem não pôde concluir a escolarização na idade regular.
A SEE destaca que os números divulgados correspondem aos registros internos do SIMAED e que os dados oficiais referentes a 2025 serão consolidados e publicados em 2026, por meio do Relatório do Censo Escolar.
A pasta também ressalta que pode haver diferenças entre os registros internos e o censo oficial, devido à data de corte utilizada para efetivação das matrículas, o que faz com que parte dos estudantes não seja contabilizada no levantamento nacional.
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