Dor, indignação e cobranças marcam debate na Aleac sobre responsabilidades do Estado na morte da jovem Joyce Araújo.
A dor da família de Joycilene Sousa de Araújo, de 29 anos, ganhou espaço no plenário da Assembleia Legislativa do Acre (Aleac) nessa segunda-feira (16), durante uma audiência pública marcada por denúncias de violência psicológica, patrimonial e institucional. A jovem morreu em novembro de 2024 após ingerir comprimidos de uso controlado. A família responsabiliza o então namorado, Thiago Augusto Sampaio Borges, por indução ao suicídio, além de violência emocional e patrimonial. A Polícia Civil investiga o caso.
Joyce, como era conhecida, sofreu uma parada cardíaca e faleceu no dia 17 de novembro, no Instituto de Traumatologia e Ortopedia do Acre (Into-AC), uma semana após a tentativa de suicídio. Para a família, o caso evidencia o que classificam como “feminicídio psicológico e institucional”, um termo usado para definir a sequência de violências que ela teria sofrido, incluindo a omissão do Estado na proteção e acolhimento.

A audiência foi proposta pela deputada estadual Michelle Melo (PDT), que ressaltou a necessidade de dar visibilidade a casos como o de Joyce. “Nós não estamos falando de um caso isolado. Estamos falando de uma sistemática de violência que tem adoecido e matado mulheres. Isso tem nome: feminicídio psicológico. Joyce foi vítima de abandono do Estado e da falta de sensibilidade institucional”, declarou.
Omissão e revitimização

O momento mais impactante da audiência foi o depoimento de Jaqueline Araújo, irmã de Joyce. Chorando, ela relatou a solidão e o sofrimento de Joyce em busca de acolhimento. Segundo Jaqueline, a irmã procurou apoio em serviços de saúde, chegou a denunciar o agressor e, mesmo após uma tentativa prévia de suicídio, foi ignorada pelas instituições.
“Ela foi invisibilizada, desacreditada. Temos provas de que minha irmã foi torturada psicologicamente. Isso não pode ficar assim”, desabafou. Ela fez denúncia e foi ignorada. Procurou ajuda na UPA e foi mandada para casa. E mesmo depois de ingerir 17 comprimidos na primeira tentativa, nada foi feito. Isso não pode se repetir”.
Jaqueline destacou que o caso sequer foi contabilizado como feminicídio nas estatísticas oficiais. “É a gente dar nome a esse crime que aconteceu. A Joyce está dentro da estatística de suicídio”, disse.
“Nós vamos debater qual foi o crime que se encaixa para o caso dela. Eu trouxe um material bem robusto, um material para observação para sensibilizar as instituições, tanto homens quanto mulheres da cultura que nós vivemos, de um caso que é secular. Muitas e muitas mulheres morrem nessas mesmas circunstâncias, esse tipo de relação entre agressor e vítima”, destacou.
Ainda conforme a irmã de Joyce, a família enfrentou não só a dor da perda, mas também críticas e julgamentos públicos.
“Sempre nos perguntam por que não percebemos o que estava acontecendo com ela. E nós, família, viemos dizer: parem de fazer essa pergunta. Parem. Esse não é o ponto, não é o porquê que ela fez isso. Não é o porquê nós não observamos, porque isso culpabiliza tanto a gente quanto a família e quanto a Joyce. O ponto é saber o porquê que ele [suspeito] fez isso. É isso que a gente quer tratar”, acrescentou.
Falta de apoio institucional

A defensora pública Bárbara Abreu, coordenadora do Núcleo de Direitos da Mulher e da Diversidade de Gênero da Defensoria Pública do Estado, reforçou que Joyce foi vítima de múltiplas formas de violência, incluindo a negligência do próprio Estado.
“Ela buscou ajuda, foi ignorada em unidades de saúde mesmo após uma tentativa de suicídio. A Lei 14.847/2024 já garante o direito ao acolhimento de mulheres vítimas de violência pelo SUS. O Estado falhou, e alguém precisa ser responsabilizado por essa omissão”, afirmou.
A defensora também chamou atenção para a vulnerabilidade das mulheres no interior do estado. “As condições no interior são ainda mais adversas. Precisamos pensar políticas públicas que cheguem lá também. Muitas vítimas dependem economicamente de seus agressores, o que as torna ainda mais expostas à violência”, acrescentou.
Para Bárbara, o machismo estrutural é um dos grandes obstáculos a serem enfrentados.
“Então, em briga de marido e mulher, a gente tem que meter a colher, sim. Essa cultura de omissão precisa acabar. Esses casos nos mostram que o feminicídio está aí, tem rosto e é um crime ‘democrático’: todas nós mulheres estamos sujeitas, mas principalmente aquelas em situação de vulnerabilidade”, finalizou.
A promotora de Justiça Patrícia Rêgo, por sua vez, defendeu a necessidade de memória, reparação e a garantia de não repetição. “É preciso que o sistema de justiça deixe de naturalizar a revitimização. Casos como o da Joyce devem ser tratados com a seriedade de um feminicídio.”
Thaís Moura, vice-presidente da OAB Acre, reforçou que a violência psicológica precisa ser reconhecida como tão grave quanto a física. “É preciso romper com o estigma de que a mulher exagera ou inventa. Violência emocional mata, e o caso da Joyce é uma prova dolorosa disso.”
“Carta Joyce Araújo”
Entre os encaminhamentos da audiência, a deputada Michelle Melo anunciou a elaboração da “Carta Joyce Araújo”, um documento que será entregue ao Congresso Nacional cobrando celeridade em projetos que tratam de estelionato sentimental e violência psicológica.
A deputada também pretende levar a discussão para o meio religioso. “Vamos entregar a carta a pastores e padres, porque precisamos envolver todos os segmentos da sociedade na luta contra a cultura da violência.”
Durante a audiência, Michelle também anunciou a tramitação de um projeto de lei que prevê a inclusão de temas como estelionato sentimental e saúde emocional no currículo escolar, como forma de prevenção a relacionamentos abusivos. “Queremos que nossas crianças, adolescentes e jovens reconheçam os sinais de relacionamentos abusivos e que saibam se proteger”, explicou.
Ao final, a parlamentar fez um apelo coletivo: “Que a história da Joyce não seja esquecida. Que ela seja um marco de transformação, para que nenhuma outra mulher precise gritar até morrer para ser ouvida.”